Encanto de Pessoa - Por L.R.
Muitas são as pessoas que nos encantam.
Às vezes são desconhecidas para nós e enquanto estamos em um bar, em um restaurante, em uma praça, em um teatro, costumamos, acho que todo o mundo, a olhar, observar os semblantes e os traços.
Geralmente são crianças adoráveis, jovens na flor da idade, outras vezes pessoas de meia idade, e poucas ou raras vezes nossos olhares se voltam para as pessoas mais idosas, mais velhas.
Talvez evitemos olhar o que temos certeza que seremos um dia: um rosto de homem ou mulher marcado pelas rugas, faces amareladas e murchas, papas no queixo, bolsas de gordura sob os olhos, cabelos ralos e brancos, olhar embaçado, nariz comprido, andar indeciso, lento e precavido.
Assim se apresentou ela, apesar de toda essa decadência física era um encanto de pessoa.
Quando a vi eu calçava sapatos pretos, de salto, limpos e brilhantes, uma calça jeans azul-marinho nova, uma blusa creme de gola alta sob um casaco cinzento comprido até os joelhos que eu adorava, e um cachecol xadrez preto e cinza que eu acabara de comprar em uma loja, estava usando pela primeira vez e era bem macio e quentinho. Eu gostava sempre de andar elegantemente.
Naquela época tinha os cabelos compridos, logo abaixo dos ombros, sentia o vento gelado atrapalhando-o constantemente, trazia as faces coradas pelo frio e a boca vermelha, seca e trêmula.
Estava chuviscando fininho naquela tarde, enquanto na cidade o maior tumulto pela chegada do papa Bento XVI, naquele dia ao Brasil.
Eu, com certeza iria à missa campal que ele celebraria no Campo de Marte, mas como gostaria de ter ido ao centro para vê-lo no Mosteiro de São Bento, mas já era tarde para tomar o Metrô.
Na larga calçada onde os transeuntes se esbarravam apressados e os carros na Av. Paulista enfrentavam mais um engarrafamento, ela entrou na Igreja São Luís.
Eu, para fugir àquela chuva, vendo que aquela velha senhora ali subia devagar a rampa ao lado, resolvi fazer o mesmo. E ali dentro na igreja vazia, só nós duas.
Bem, o ambiente era de oração, a hora era de oração, todos voltavam o pensamento para a presença de Sua Santidade, então nada mais natural que eu também pensasse em orar, em Deus.
Mas, meu pensamento se distraía e eu observava com atenção aquela senhora. Reparei em como se vestia e como eu também faria se atingisse aquela idade.
Eu, com meus cinquenta e poucos anos, mas aparentando, diziam, quarenta, estava muito bem naquela roupa, e me sentia bem disposta, e até naquele dia, mais bonita.
Ela, o que pensava de mim? Porque me olhava disfarçadamente também.
Estava calçada com saltinho médio marrom, bem clássico, usava meias de nylon, sua saia abaixo dos joelhos era preta, um casaco de lãzinha castanho que deixava descoberta a gola branca de renda da blusa, os cabelos repicados de corte médio, as orelhas eram adornadas de brincos redondos, discretos. Uma bolsa preta pequena completava a sua toilete.
Eu olhava seu rosto e constatava nele as marcas dos dias idos.
Permaneceu ajoelhada, mas por pouco tempo.
Depois sentou-se no banco, colocando a mão no peito, enquanto com a outra esticada, segurava no banco à sua frente.
Percebi imediatamente que sentia-se mal.
Levantei-me num ímpeto, fui até onde estava e a segurei antes que caísse desmaiada, amparando-a em meus ombros.
Gritei por socorro por várias vezes, alto, e ninguém apareceu.
Comecei a ficar desesperada, pensei em deitá-la ali no banco e quando ia de fato agir assim, ela foi abrindo os olhos devagar.
Perguntei-lhe se estava melhor.
Iria sair e procurar ajuda.
Ela disse que tinha um comprimido na bolsa.
Eu o procurei, revolvendo o seu conteúdo e quando lhe dei, tomou em seguida e foi ficando melhor.
Ela disse que gostaria de voltar para casa. Morava ali perto em um apartamento na rua Bela Cintra. Então me dispus a acompanhá-la; como negar ajuda àquela senhora? Ela agradeceu comovida. Fomos andando em silêncio até lá. Ela de braço dado ao meu, caminhando devagar. Eu pensando o que o destino me reservava desta vez.
Mas descobri que ele colocava no meu caminho um encanto de pessoa.
Só que não sei por quê não perguntei seu nome.
Eu um dia estava muito triste, era um desses dias chuvosos de primavera, chuva fina, dia gelado. Sempre que os dias se desenrolam assim, prefiro ficar em casa sozinha, junto com minhas lembranças, meus álbuns de fotografias, observando meus pais, meus irmãos, meus filhos, e meus dois netos e bordando aquelas toalhinhas ou lendo meus livros. Às vezes ainda tenho que recorrer a meu remédio para o coração que já está muito velho e cansado para os meus noventa e dois anos, então tenho que levá-lo na bolsa, porque já houve momentos em que não me sentia muito bem, voltando as sufocações.
Costumo sair na praça, aqui perto, onde as crianças brincam, os jovens casais namoram, os de meia idade fazem suas caminhadas e me sento em um banco e fico observando suas fisionomias, seus traços, seus semblantes e distraio pensando no tempo em que eu era assim.
Agora estou bem velha. Antes, me diziam que eu estava bem, mas agora as pessoas evitam me olhar, pois não tenho mais a imagem de antes. Sei que estou enrugada, a pele amarelada e opaca, os olhos embaçados, as mãos cansadas e doloridas; às vezes meus dedos se perdem nas contas do rosário. Mesmo assim ainda sou vaidosa e gosto de me vestir bem. É o que ainda me dá prazer e mais ainda ir até a igreja, sendo o único lugar que frequento e é o mais importante, onde encontro ainda forças para continuar essa minha vida solitária.
Hoje, eu apesar do frio e da chuva não resisti à amargura e depois de ter sentido que era necessário que eu não faltasse, caminhei até lá. Quando entrava pela rampa ao lado, havia alguém subindo logo atrás de mim. Quando me encontrei lá dentro da igreja notei uma mulher de meia idade que também lá entrara, logo em seguida, e ajoelhara em um banco à minha direita. Eu observava o seu semblante disfarçadamente e ela também me olhava . Era tão familiar para mim. Seu rosto, sua boca, seus cabelos, seu porte, sua estatura; e era vaidosa, vestia-se bem. Acho que eu já havia tido um casaco cinzento, comprido, bem parecido com aquele que ela usava, mas minha memória está falhando. Depois minha vista foi se tornando turva e senti uma dor no peito e desmaiei. Quando despertei ela estava a meu lado e eu lhe pedi meu remédio. Ela o procurou em minha bolsa . Depois se prontificou a me acompanhar até em casa e eu a segui. Dei o braço para ela e caminhamos em silêncio até aqui. Fiquei pensando que o destino fez com que eu encontrasse essa moça, tão gentil, um encanto de pessoa. Mas esse casaco cinzento, parece que eu já tive um igual, e seu semblante me lembra alguém.
Sei que quando nos despedimos, lhe agradeci, sorrimos uma para outra, ela foi andando lentamente, desaparecendo entre a multidão.
Enquanto eu fechava a porta do elevador que conduzia ao meu apartamento, pensava:
Ah! Por quê eu não me lembrei de perguntar seu nome?
Escrito por Lavínia Ruby em 24/02/2013. mariegracev

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