28 de setembro de 2021

O Sineiro

 

O Sineiro - Por L.R.




Soava alegremente os sinos, e a este som se misturava ao barulho intenso das vozes da multidão, frenética, lá embaixo.

Da torre se via o movimento, mas esta visão se tornara tão indiferente para ele que se agarrava a deter a vista ao longe, não ali embaixo, onde tudo era turbulência na praça da igreja, mas lá, onde uma paz invadia sua alma, naquelas ruas desertas que circundavam a praça onde tudo era silêncio e a manhã era calma, onde não se via quase ninguém se locomovendo, onde os portões das casas estavam cerrados, lacrados, somente algum cão de guarda atrás de uma parede, escutando, latindo e espreitando com ar alerta, através das grades do portão de algumas casas.

Naquela manhã, tão agitada, além, muito além da cidade, as coisas se passavam devagar, o ambiente era outro, de paz, de felicidade, de calma, de amor, de ternura porque não se podia interromper a natureza, seguindo seu rumo, determinada, marcada, cadenciada, sem interferência. Então os olhos que miravam ora lá embaixo, ora lá distante, e que se lançavam ao além, no azul pintado pelas nuvens da manhã, que distinguia muito bem aqueles dois momentos diferentes: momentos de estar lá longe, ou de ficar ali perto, aquele homem simples, insignificante, que só foi percebido quando fez soar o sino, que se agitava trêmulo e nervoso com os gritos nos ouvidos, mas que se tornava surdo a esse clamor da turba ao ressoar o sino e então enxergava longe, onde tudo é silêncio, que se tornava ciente que aquele mundo caótico só podia ser o da falsa felicidade, que lá de cima da torre, o mundo real era aquele da paisagem monótona, devagar, de cores desvanecidas, de rosa e verdes fortes, de tons castanhos, amarelos e lilases, do céu da qual se sentia tão próximo que até dava para se ver envolto no movimento silencioso das nuvens flutuando no espaço, do riacho que corria tranquilo lá adiante, com um barulhinho suave de águas puras, do canto alegre dos pássaros, voando e saltitando nas árvores.

Tudo isso era motivo para ele, de repente, perceber que não era mais possível ele estar ali, todos os dias, na torre, a tocar os pesados sinos, a subir e descer aquelas escadarias de madeiras, trezentos degraus que o faziam sentir sempre como se nunca pudesse ter mais coragem, força e impulso de fazê-lo por mais tempo.

Desde que era menino recolhido à casa paroquial, submetido às ordens do vigário que o educara dentro de uma religião, onde este entendia dever evitar mais ainda a ira de Deus e o seu castigo, pois, já havia nascido do pecado, daí ter sido abandonado. Então cumpria seguir o seu caminho enquanto vivesse, submetendo-se ao trabalho árduo para expiar essa sua origem. Assim quando pequeno lembrava como trabalhava, varria, lavava o chão da igreja, arrumava os paramentos do padre com muito temor de não lhe estar satisfazendo, mas com muito amor, carinho e fé também, visto que encontrava na solidão de suas orações, o encontro com o verdadeiro Deus, que era seu companheiro, este ele não temia, era bem diferente daquele que o vigário procurava passar-lhe: o vingador.

No confessionário, que visitava duas vezes na semana, não se sentia um pecador como o definiam, mas era obrigado a admitir que pecava em pensamento quando dizia não temer a Deus, e era sua penitência ficar mais tempo na igreja jejuando e fazendo mortificações em seu corpo mirrado.

Além de suas funções, desde cedo, teria que duas vezes ao dia, antes do horário das missas, subir até a torre e tocar o sino, chamando os fiéis à oração. E cumpria rigorosamente seu ofício de sineiro.

Estava, porém, relembrando os últimos acontecimentos. Quando se pendurava nos sinos e os badalava, olhava além da janelinha da torre e então, não se sabe por que, ficava fascinado com o que via, e enquanto o sino tocava, aquela paz o envolvia, parecia que não ficava mais nesse mundo. Seus olhos procuravam o mundo real, mas algo fantástico acontecia, ele se ausentava dali, algo o fazia flutuar a cada badalo. Não entendia porque esta paz o envolvia. Estava tocando sem esforço, e sabia, com soares diferentes do costume, parecia música que ele conseguia produzir com os sinos. Seria talvez sua experiência que fazia com que conseguisse tal feito? Mas quando descia da torre algumas pessoas estavam lá embaixo, olhando para ele, sem entender. O velho vigário o fixava com seu rosto austero, de crítica.

_Que está acontecendo? Que pensa que está fazendo? Está brincando em serviço? Vai fazer penitência. Isso não é coisa de Deus.

Ele não entendia o porquê, não compreendia a melodia dos sinos, mas continuava executando-a tão enlevado, em transe, naquele momento mágico.

E assim, durante vários dias e cada vez mais aquela música soava cada vez mais intensa, mais alta, mais harmônica, mais celestial, até que aos poucos foram aumentando o grupo de pessoas, e daí toda uma enorme multidão aglomerarem-se à volta da igreja: curiosas, religiosas, zombadoras, medrosas, abismadas, apreensivas, invejosas, temerosas, revoltadas, não conseguindo entender o que o sineiro estava fazendo.

Muitos que tinham em seu coração a maldade tampavam os ouvidos porque essa música os penetrava na alma com tal força, que elas não conseguiam mais viver com seus remorsos, atormentando-os e estavam aterrorizados. As pessoas tementes a Deus diziam: Milagre! É um aviso para se converterem, Deus está chegando. Havia ainda aqueles que, ateus, queriam eram eliminá-lo pelo distúrbio que estava causando transformando a vida de todos, que não trabalhavam mais, ansiosos para ver lá no campanário aqueles sinos que pelas mãos de um mal nascido abalava e desnorteava todo mundo, os conduzindo sem outra opção à velha igreja.

E assim, naquele dia, quando ele desceu as escadarias, a multidão queria cercá-lo, uns para beijá-lo, tocar-lhe como algum santo, outros para o massacrarem. O vigário olhava-o, mas não sabia o que dizer, não sabia ser coisa do bem ou do mal. O sineiro então, frente a todos aqueles olhares, naquele momento, cerrou com as trancas as portas da torre para não serem invadidas e subiu as escadas lentamente, com lágrimas nos olhos. Estava encurralado ali, quem poderia ajudá-lo, estava fora de si, não sabia como controlar o seu descontrole, como tocar uma música normal, como voltar a ser o reles sineiro, que todos gostariam que fosse. Olhou da janela aquela multidão que com os olhos erguidos para a torre, estava agora silenciosa, com medo de ouvir novamente o barulho dos sinos. Ele olhava a paz, longe, no vazio do espaço, no vazio das ruas silenciosas ao redor, nos cães que ficavam alerta ao barulho ensurdecedor dos sinos.

Sentou-se no beiral de uma das janelinhas onde podia ter uma visão de trezentos e sessenta graus da cidade e seus arredores. Como estava tudo mais bonito agora, com a multidão agora estranhamente calma, cansada de suas lutas, apaziguada e rendida, se misturando à paisagem e tudo em ritmo lento, se compunha, se mesclava.

Ele queria saber. Perguntava o por quê a Deus, mas ao mesmo tempo era tão inútil sua pergunta, quem lhe responderia? O que acontecera? Meditou um pouco. Arrisco-me a tocar os sinos? Já não aguento mais essas reações, e eles estão calmos agora. Mas eles não podem entender que não tenho autoridade sobre mim mesmo.

Mas a hora da missa das dezoito horas se aproximava e a multidão havia passado o dia todo lá, após o toque dos sinos para a missa da manhã que havia precipitado o tumulto, e agora se aproximava a hora da Ave-Maria. Nunca deixara um dia sequer de fazer soar os sinos. Estava muito fraco, com fome, com sede. Tocaria o sino para a missa, ou abandonaria a igreja e iria embora. Mas e a reação do povo? Não! Deveria cumprir a sua missão, era sineiro, tocaria o sino. E assim o fez.

Quando se enlaçou nas cordas, agora o som saiu mais intenso que nunca, mas mais devagar, mais suave, mais harmonioso, era de Deus, passava como uma mensagem de amor, como um chamado, uma força magnética que atraía e durante muito tempo sentiu-se essa vibração, enquanto a multidão respeitosa, orando cabisbaixa foi adentrando na igreja, não havendo mais ninguém lá fora, quando o sineiro, esgotado, finalmente soou as últimas badaladas.

Sentou-se por um instante, mas sentia-se tomado por aquela paz, aquela alegria. Desceu as escadas. A porta que dava acesso à nave estava curiosamente aberta e ele viu que todos estavam ajoelhados e não se voltavam para o olhar. Ele não compreendeu de imediato essa indiferença.

Atravessou o corredor central. Chegou até a frente, no altar, e lá, nem mesmo o vigário notou sua presença, não o olhou quando o sineiro recuou para que não se esbarrassem, e assim, depois de passar por ele, deixando-o perplexo, foi prostrar-se ao chão, agitando o turíbulo. Alguém, porém, envolto em uma claridade lhe deu a mão e ele reconheceu Quem É. O sineiro não estava mais nesse mundo, mas no outro mundo, imutável.


Escrito por Lavínia Ruby em 13/04/11. mariegracev



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