27 de setembro de 2021

Momentos

 

Momentos - Por L.R. 

 


Ontem depois de quatro meses resolvi mandar consertar o que ainda costumo usar: meus dois relógios parados e um brinco que havia soltado a pérola.

Abri a gaveta da penteadeira e separei esses objetos.

Observando-os, criei uma história:

Regina lembrava-se perfeitamente da hora exata em que percebera que não teria mais nenhuma chance de recuperar o que havia perdido: a honestidade. Ninguém estava vendo, então poderia pegar aquele relógio que estava em cima da mesa da secretária do Departamento. Como estava só de passagem, ninguém dera por sua presença. Também quem o deixara ali era realmente descuidado, no mundo em que estamos. Agora veio o arrependimento, mas era tarde. Como chegar até lá e colocar o relógio de volta? Fora num momento de impulso, mas o preço que pagou com o seu remorso fora caro demais. Ele está agora abandonado na gaveta, não conseguira usar”.

Resolvi arrumar a gaveta. Lá estavam alguns estojos cheios de bijuterias baratas, algumas joias de maior valor e uma infinidade de outras coisinhas misturadas. Resolvi arrumar aquela bagunça emaranhada. Despejei os conteúdos sobre a cama e fui criando histórias sobre cada uma daquelas pequenas peças.

Há tempo atrás, em sua vida, Dona Augusta era uma dama, e o que representava para a sociedade tinha muito valor para ela porque fazia parte de grupos de senhoras que ajudavam as instituições de caridade. Sentia-se constrangida de ter tantas joias caras guardadas no cofre e não podia ficar exibindo-as frente às pessoas carentes. Tinha também receio que essas mesmas pessoas a furtassem, então comprava peças falsas e juntava aos montes e eram tantos broches e colares que se misturavam e não tinham nenhum valor para ela. Quando havia alguma festa importante aí sim tirava as joias verdadeiras do cofre e as exibia com orgulho. Os anos passaram, seu marido morreu e ela ficara nas mãos de mal administradores que liquidaram com sua fortuna. Agora não ajuda a nenhuma instituição, mal consegue se alimentar com as tortas que vende. De vez em quando usa as bijuterias baratas, mas algumas joias que foram conservadas de sua ruína ela nunca mais exibirá, são sua garantia para o resto da vida”.

Sei que alguns estavam em bom estado esperando que eu os usasse de novo, esses anéis e esses brincos. Pensaria sobre isso, embora nas oportunidades eu esqueça completamente.

Esses anéis e esses brincos Adalgisa comprara com muito sacrifício. Era cega por anéis e suas mãos exibiam pelo menos seis ou sete. Dois ou três em cada dedo. E os brincos então, eram os mais modernos e ela fazia questão em agitar a cabeça enquanto falava para que os ouvisse balançar. Como era bonita, com seus olhos negros e seus cabelos negros. Principalmente aqueles brincos dourados de argola que fazia parecer uma cigana. Depois daquele assalto em que foi a principal vítima e que lhe haviam rasgado as orelhas aos arrancá-los e que lhe machucaram os dedos, foi o ponto final. Será que ela teria coragem de sair com eles? Surgem as oportunidades para se exibir, mas ela os esquece, foi um trauma que não consegue superar”.

Aqueles que estão arrebentados não teriam mais condições a não ser que eu os mandasse consertar também, mas preferi deixá-los como estão. O seu tempo havia acabado quando rebentaram, quando estragaram, e eu não quero que haja continuidade.

Dalila conseguira conservá-los guardados ainda naquele estojo, todos arrebentados; seria inútil consertá-los, tinha um sentimento de mágoa. Quando ela os cobiçara estavam no pescoço de sua patroa, senhora fina, e ela aproveitava-se de sua ausência e ia até o toucador e os colocava e se olhava no espelho. Ficava realmente mais bonita que a dona. Veio sim parar em suas mãos, mas quando já não prestavam mais, quando estragados os fechos, arrebentadas as contas, e quando isso aconteceu havia também sido demitida, por pegar só um. Quase foi parar na cadeia. _Pode levá-los, não quero mais, já que você os usava às escondidas _ e atirou todos nela, mas antes inutilizou todas as peças, e ela que tanto as cobiçara as levou embora, mas nunca teve coragem para usá-las; lembrava de tudo e chorava”.

Entre uma e outra peça, aquele colar de pedras azuis que frequentara tantos bailes, há muitos anos atrás e que era de minha mãe. Que felicidade deve ter sentido quando ganhou de meu pai e como ela ficava bonita quando o usava acompanhado de um vestido no mesmo tom.

Era um Baile de Réveillon, muitos casais dançando ao som da orquestra animada, drinques e risos de felicidades junto ao desejo de um ano cheio de paz, saúde e prosperidade. Os olhos de Clara brilhavam mais que as pedras azuis. Esse foi o primeiro baile em que usou o colar que ganhara de presente de Natal.

Aquele anel de caveira cuja lembrança eu tive dos gibis do Fantasma lidos por meu irmão na infância e que quando ele comprara diziam para ele: _ Como tem coragem de colocar uma caveira em seu dedo? Hoje se tatua caveira em qualquer parte do corpo sem esse preconceito.

_Se você ler você vai gostar! Ele mora na Floresta Negra, em Bengala, na Caverna da Caveira; é chamado de Espírito que Anda; sua namorada é a Diana, seu cavalo chama-se Herói e seu cão Capeto. Vive nas matas com os pigmeus e luta contra a pirataria e contra os bandidos. Eu já li e estou fazendo coleção. Olhe que comprei também um anel da caveira. Minha irmã diz que é um anel feio, mas se eu pudesse faria uma marca da caveira era aqui em meu braço _ dizia Célio com orgulho.

Aquela gargantilha de ouro velho tão tradicional e que eu julgava tão indiscreta, comparada aos colares de hoje que deixam as mulheres sufocadas: pérolas enormes, correntes escandalosas.

_Olhe aqui, Viviana! Vi um igual na novela. Deve ser mesmo a última moda, bem, se não for, pelo menos disfarça bem. Chama atenção, e eu quero comprar. Meu pescoço já não é o mesmo. Percebe-se a idade e só pude fazer plástica em meu rosto, e com isso tive que penhorar até minha gargantilha de ouro velho”.

O meu reloginho de corda, presente de meu noivado e outros relógios que eram tão difíceis de serem adquiridos porque eram caros demais, e hoje encontramos em qualquer camelô, cópia igual, preço ridículo.

_Comprei sim, João! Pra que relógio? Olho as horas no celular. Os outros deixei todos na gaveta. Nem lembro que um dia usei relógio”.

Os colarzinhos banhados de prata que eram uma febre na minha juventude e hoje ninguém faz ideia como e quanto se vendia.

Palmira vendia as joias de prata enroladas em um pano de veludo. Ia nas repartições, escolas, escritórios, na casa de amigas e vizinhas e ganhava um bom dinheiro com isso”. Agora parece que os jovens estão mais interessados em guardar dinheiro para comprar celulares, computadores e outros aparelhos eletrônicos. É sem dúvida outra, a febre da juventude.

As correntinhas de ouro, os pedaços de terços com um ícone em forma de cruz, medalhas de Nossa Senhora, santas e santos, o Agnus Dei tão sagrado que todos queriam que os filhos tivessem e que hoje em dia nem mesmo se coloca nomes santos nos filhos, somente uma ou outra pessoa continua a manter essa tradição.

Joana e seu marido, o Adalberto, vão a igreja todo domingo e assistem a missa das nove horas. Não deixam de convidar os filhos e os netos e aconselhá-los a crer em Deus e cumprir seus mandamentos porque tudo passa e para solucionar os problemas só encontramos força para lidar com eles quando colocamos nossa vida nas Suas Mãos. A oração é importante e mesmo que os seus familiares tão pouco orem, Joana e Adalberto farão os pedidos de proteção por eles. Joana guarda com carinho todas as medalhinhas dos santos e os pequenos terços que presenteara os seus e que estão esquecidos ou devolvidos nas gavetas”.

O anel de Normalista chamado Chuveiro, símbolo de minha profissão que se tornou tão incrivelmente desvalorizada e que me trás tão boas recordações de meu tempo de professora e que eu tanto amo e valorizo.

Depois de onze anos uma aposentada presencia pela televisão, pela internet, as manifestações de dezenas de milhares de pessoas pelo Brasil afora, a favor da Reforma Política, contra a corrupção, contra a PEC 37, inflação, gastos com a construção de estádios para a copa Mundial de 2014, contra o aumento na passagem de ônibus, pela melhoria na Saúde, na Segurança e na Educação. Até hoje, desde aqueles velhos tempos de magistério, tudo continua igual. No seu peito uma dor e uma vontade enorme de chorar. Lembrou-se das greves em que participara e como sofrera em vão. Impossível acreditar que não seja possível as coisas mudarem em nosso país.

As abotoaduras de casamento de meu marido guardadas de lembrança com carinho e somente usadas naquela ocasião.

Muitas camisas compradas, usadas, descartadas; camisas esportivas, camisas de trabalho de mangas curtas, mangas compridas, camisas de missas, camisas de trabalho, sujas de graxa, de tinta para pintura de carros, camisas cheirando a desodorante, camisas sujas de terra, grudadas de cimento e cal, lavadas, esfregadas, penduradas nos varais, gastos colarinhos, punhos encardidos, sem botões, camisas de variadas cores, camisa de malha polo, listras, xadrez, lisa, várias cores, camisetas de andar em casa, várias estampas, camisas para casamentos, para bailes, para batizados, camisas sociais, mas nunca outra vez as abotoaduras.

Os brincos de minha filha, pequeninos quando bebê, depois médios e grandes quando moça, perdidos seus pares; os anéis folhados, manchados e descascados; os broches que costumávamos usar presos à lapela dos casacos e que eram adornos em forma de corações, senhoritas com chapéus, borboletinhas e lacinhos; as alianças e anéis, brindes vindo em doces, os colares artesanais de contas e sementes comprados em viagem, os colares de pérolas falsa que ainda hoje se vê no pescoço de alguma senhora idosa, mas em nenhuma senhorita; as pulseiras e braceletes que perdi completamente o costume de usar.

Tivera eu um grande baú, de tesouro, esses de piratas e procuraria um lugar, bem secreto, uma ilha, em qualquer lugar dessa imensa Terra e faria nela um cova, debaixo de um coqueiro, em uma praia e marcaria o lugar em uma folha desenhada como um mapa e o colocaria em uma garrafa tampada e iria jogá-la ao mar onde sei que ninguém acharia e nem saberia, porque tudo do baú ali estaria bem seguro, desde os brincos pequeninos, até as pulseiras e braceletes que nada valem para os outros, mas que tudo isso que foi nele guardado tem seu preço incalculável e não cairiam em mãos inescrupulosas porque perderiam sua pureza.

Todos esses objetos tiveram a sua história, o seu tempo, real ou sonhado por mim.

Se devo desfazer deles, e esquecer que um dia estiveram em minha gaveta, é a minha incerteza. Não consigo! Muito já pensei sobre isso:

_Por que é que tenho tanto apego a essas coisas estragadas, rebentadas de tão pouco ou nenhum valor?

Novamente eles são fechados nos seus estojos, de novo longe da vista de todos, porém em minhas mãos que os manipulei eles reviveram novamente, por uma história, um breve MOMENTO.

Escrito por Lavínia Ruby 14/06/2013. mariegracev





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