Solidão - Por L.R.
Seis anos haviam então passado.
Recordando o que vivera antes deste tempo e fazendo um balanço, se podia dizer que a vida lhe havia reservado tudo que um homem poderia ambicionar: boa profissão, a que escolhera quando estudante, e que fizera dele uma pessoa respeitável no meio acadêmico, lhe permitiu usufruir de um salário digno que supriu todas as suas necessidades e de sua família, inclusive gozar dos prazeres que a vida oferece, como boa casa, boa comida, viagens, compras, carros do ano. Disso não podia se queixar.
Sua mulher também falecida há seis anos de um câncer no colo do útero, era lembrada com muita saudade, e amada por ele como foi, fazia falta demais em sua vida, deixando-o só. Como Flora havia sofrido! Desde que se casaram tentara engravidar. Para ela, seu maior desejo era ser mãe. Três abortos, tratamentos, e depois de uma gravidez de alto risco nasceu Francisco, assim chamado por Flora, que agradeceu em suas orações, a graça que o santo lhe proporcionara depois de tantas penas.
“E era linda essa criança; veio como um raio de esperança, e a nossa vida a princípio tão vazia, tornou-se radiante, e eu e ela lutamos com mais ambição, com mais incentivo, pois, teríamos, enfim, nossa família mais bem estruturada, e teríamos esperança de descendência, cuidamos como nunca de nosso filho que só nos trouxe alegrias”.
“Francisco, tão bonito, com os traços firmes e severos de seu avô, mas amoroso, dedicado, alegre e descontraído, animava nossa casa com o seu sorriso e o riso e os falatórios com os seus colegas e garotas. E desde quando era criança, saíamos de férias sempre levando um ou dois companheiros em nossas viagens”.
“Poucos parentes tínhamos, e todos moravam longe, em outros estados, pois, quando eu era pequeno meu pai mudou-se para São Paulo para tentar trabalho aqui, porque no interior era muito difícil, então fui criado cercado por amigos que iam e vinham e depois de falecidos meus pais e sendo Mestre em Ciências, tínhamos então um círculo de amizades de professores e colegas da Universidade. Então veio a aposentadoria, com ela conseguimos levar uma vida mais ou menos equivalente a que levávamos quando na ativa”.
“Meu filho formado em Medicina fazia residência médica. Tinha então vinte e nove anos quando aconteceu o acidente de automóvel que lhe tirou a vida”.
“A partir daquele dia fatídico, minha mulher começou a definhar. Já estava com a saúde debilitada pelo tratamento e não quis mais viver. Recusava-se a tomar os remédios, a fazer quimioterapia e acabou falecendo um ano depois da morte de Francisco”.
“Desesperado fiquei com as duas perdas. Aposentado, afastado de meus amigos professores, que no começo até me visitavam, e ainda encontro, mas, somente quando saio e vou ao cemitério levar flores para Flora e Francisco e conversar com eles, ou passeio pelos jardins e me recordo de quando os dois estavam comigo. Não vi motivos para sair de casa para mais nada e me encerrei aqui em minha biblioteca onde passo a maior parte do tempo. Tenho uma faxineira que vem uma vez na semana, dona Selma, muito boa pessoa e vejo o rapaz do restaurante que me trás o almoço em casa. Quando estou com vontade, vou até a cozinha e preparo meu chá e um café e é a hora em que mergulho no passado, revivo entre fotos de álbuns e objetos o que cada um deles representava e os momentos que não reviverei mais, e a solidão é a companheira constante que me abraça, mas não me consola”.
“De manhã é o horário em que o sol entra pela janela da biblioteca. Às vezes ele me surpreende sentado na poltrona onde eu passei a noite e ele me aquece as mãos, o rosto e os pés enregelados. Então me lembro se existe, além desse sol, um ser maior que nos presenteia com uma vida e que diz faça suas escolhas. Eu escolhi não acreditar, e sei que devo ter errado nessa escolha para sofrer assim. Mas depois de me emocionar até não conseguir mais segurar os soluços, revoltado, tentando ver a morte com frieza, no mesmo instante os rostos sorridentes de Francisco e Flora não se revelam tristes, parecem estar na expectativa de uma espera. Será que esperam por mim para sermos felizes em outro lugar? Será que os verei novamente? Tem que ser. Essa saudade terá que ser substituída pelo encontro”.
“Mesmo sendo um professor de Ciências como eu, não consegui na época levantar dúvidas sobre minha convicção em não crer ou não ter fé na religião, mesmo tendo a meu lado Flora que se valeu dela para ter Francisco, e eu não acreditava na existência de Deus, e agora mais que nunca quero acreditar, porque nas Ciências não encontro respostas para a minha dor, que não é do meu corpo, mas do meu espírito”.
“Abro e leio esses livros todos os dias”.
“Há coisas profundas em seu conteúdo”.
“Histórias humanas de toda essa gente que aqui passou e se foi, e nesse momento ainda permanecem em seus personagens”.
“Histórias incríveis de vida que de fato existiram de mil e uma maneiras, que andaram por esse mundo, que constituíram famílias como a minha e que as perderam, que fizeram guerras, que plantaram, colheram, inventaram coisas, construíram e destruíram cidades, que atravessaram desertos, que galgaram montanhas, que se embrenharam em florestas, que transpuseram geleiras, que atravessaram oceanos, que mudaram a paisagem, que ultrapassaram seus limites, que acreditaram em deuses, que acreditaram num Deus, que apesar de viverem tanto tempo procurando um sentido ainda não o encontraram, que registram tudo em seus livros porque sabem que depois deles outras gerações virão e com qual objetivo? O de viver durante pouco tempo com pessoas que aprenderam a amar e que depois as perdem e ficam as lembranças e a saudade?”
“Por quê? Para quê? Tem que haver uma explicação para tudo isso. Para nossa existência”.
“Vou continuar a ler, vou continuar a me inteirar da história humana, afinal a minha solidão é real. Estou só nesse mundo, dentro dessa biblioteca”.
“Não, não estou...”
“Eles estão aqui bem vivos à minha volta... Ouço barulho...muitos sons, vozes, pessoas, movimento, muito movimento,...um turbilhão...”
Os livros estão caindo das estantes e caem entreabertos. As páginas são folheadas com avidez como se um vento forte, o vento dos tempos as tivesse manuseando, livros amarelados, páginas comidas pelas traças, livros grandes, pequenos, livros antigos e modernos, livros de vários idiomas, livros de aventuras, de contos, de poesias, de romances, de música, bibliografias, artes, mapas de países, geografia, história, medicina, física, química, direito, sociologia, filosofia, psicologia, matemática, todos abertos, escritos, lidos e vasculhados por infindáveis números de mãos e enfim, sobre a prateleira superior um somente não caiu.
Ficou lá, permaneceu.
O Cientista ateu se ergueu exausto do chão depois de ter na sua ânsia procura, jogado tudo ao chão e folheado desesperadamente, e com muito esforço, esticou o braço e com mãos cuidadosas como se achasse um tesouro descobriu o livro nunca antes por ele lido:
Escrito por Lavínia Ruby em 19/10/10. mariegracev

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