28 de setembro de 2021

No Tempo Certo

 

No Tempo Certo - Por L.R.

 



Era uma cadeira azul-clara, de madeira maciça, pesada e muito antiga que estava ali, naquela sala de assoalho sujo e desgastado pelo tempo. Só ela, aguardava.

Era num aposento bem amplo, paredes vazias, papel de parede de rosas e ramagens de verde descorado. Do lado esquerdo via-se uma janela grande, com as folhas abertas para dentro da sala. Os vidros parcialmente quebrados, deixavam entrar a brisa da manhã fresca e salutar que inundava o cômodo silencioso, e este parecia estar à espera de algum ruído para que, enfim, despertasse de mais uma noite passada na escuridão. Da janela aberta podia-se ver lá fora, a rua, quieta, esperando pelo movimento dos soldados e poucos transeuntes que logo a encheriam de rumores. Agora, porém, tudo imóvel, só o farfalhar suave das folhas das árvores que enfeitavam a calçada.

Depois de espiar cuidadosamente para dentro da sala, encaminhou-se em direção à cadeira azul-clara e depois de olhá-la carinhosamente e apoiar suas mãos no seu encosto, nela sentou uma mulher. Sua idade? Vinte e dois anos. Pelo sofrimento e amadurecimento no rosto, aparentava bem mais. Trazia na sua mão umas fotografias. Começou a mirá-las. Há muitos anos tiraram essa foto. Sentada nesta mesma cadeira estava seu pai, sua mãe ao lado, seu irmão e ela pequena. Enquanto observava as pessoas das fotos e lembrava de suas vidas, perguntou-se:

Por que a ocultou? Por que queria preservar ainda aquela cadeira, naquela casa vazia?

Para continuar sonhando ali sentada, na ilusão de que tudo ainda não acabara? O tempo chegara, a ruína, a destruição. A hora era derradeira.

É que nas suas recordações diárias, sentada naquela cadeira, pensava esperançosa em continuidade, mas isso não existiria mais, era passado, que aquela casa não deveria ser ocupada por mais ninguém? Não, isso era utopia. Não seria justo, mas era sua vã esperança. Ela não era mais sua. Penetrava ali porque ainda possuía uma cópia da chave. Só para suas lembranças. Esvaziaram tudo. Afinal, de tudo que restara, na sua memória as lembranças eram por demais nítidas. Por que ela então se importaria com todas aquelas coisas? Guardava ainda poucos objetos, fotos, o relógio de pulso, uma corrente, alguma roupa. Vazia por dentro, no coração, mas a mente fervilhante e ali, sentada naquela cadeira em frente daquela janela olhando a rua, tudo a perturbava., quando ouvia a sua gente, seus familiares naquela casa, colocava os objetos e móveis nos seus lugares, tudo intocável em sua memória e nas fotos que tinha em mãos, da casa viva.

Quantos sentaram naquela cadeira azul! Assim como todos que ali moraram queriam preservar o que era de seus antepassados e acumulavam tudo que adquiriam durante suas vidas, ela, a última, a que restara, quis há um tempo guardar tudo também: a casa, preservar os objetos, os móveis refinados, os quadros caros, a porcelana, a prataria, as toalhas de linho, até aquele toucador que era de sua mãe e que ela também gostaria de ter igual. Os tapetes, as cortinas de renda, os carros. Não, não, não. Tudo lhes foram tomados, tudo.

O dinheiro, agora para ela nada mais significava. Preferiria ter tido uma vida simples, mas feliz Queria agora esta vida simples, diferente, estava sozinha, tinha esse direito, quase um dever para com ela, para com todos. Suas vidas e de todas aquelas pessoas das fotografias, de sua geração, também não haviam sido felizes apesar de tudo que possuíam. E aquilo vinha de muito tempo, a fama, os cargos importantes. Ora um, ora outro, todos orgulhosos de suas posições, de sua riqueza, mas maldita. Ela se viu cada vez mais só, via um a um irem embora, por doença, acidente, suicídio, e ,enfim, as perseguições que culminaram com a morte de sua família, que eram então só ela, mais o pai, a mãe e o irmão. Não lhe restava mais parente nenhum. Haviam sido eliminados seus avós, seus tios, seus primos, muitos amigos, muita gente também vítima do preconceito, levados aos campos e outros mortos ainda em consequência da guerra. Ela viu seu pai sendo vítima de perseguições políticas, ser preso, torturado, morrer na prisão, sua mãe faleceu do coração, de um ataque de desespero. Seu irmão assassinado quando tentava fugir. Que restaria para ela? Queria esconder com medo de tudo, em algum lugar. Todos sabiam que perdera tudo, tudo. Sabia estar sendo procurada, perseguida, encurralada, também de uma hora para outra encontraria alguém que tomado de ódio a eliminaria. Mas agora que estaria esperando fazer? Porque continuava teimando em permanecer ali? Não tinha como lutar contra o destino de sua raça. Eram judeus. Seriam perseguidos pelo preconceito. Não queriam que sobrasse ninguém, e ela sentada na cadeira azul, relembrando-se que aquelas pessoas, tão amadas por ela, se a estivessem observando de algum lugar será que aprovariam o que tinha resolvido fazer? Abandonar tudo, a casa, a cidade, o país? Será que eles orgulhosos como eram aprovariam que ela fugisse, ou a recriminariam por isso, por não os enfrentar com a própria vida? Quem sabe? Pobre, eles teriam alguma compaixão? Evitaria a perseguição? Mas sabia que não, e esperava. Muitos pensavam que naquela casa vazia não houvesse mais ninguém. Sempre vinha ali pela manhã e sentava naquela cadeira e pensava, depois ia embora.

Estava morando escondida em um porão, há uns oito meses. Um amigo da família, de muitos anos, que a amparava às escondidas. Aconselhava-a sair do país. Havia que ter um lugar para ela viver em paz. Mas ela achava que não deveria se afastar do mundo em que sempre viveu. Será que encontraria paz? Queria ficar, amava o lugar, a casa, as recordações. Olhou no relógio de pulso, guardou as fotos na bolsa. Observou a sala. Seria pela última vez? Da janela um raio de sol penetrou e iluminou a cadeira onde estava, permitindo à claridade difundir-se numa alegria suave na sala. Seus olhos ofuscados se encheram de lágrimas, soluçou sentida, até que seu corpo foi, enfim, relaxando e ela disse:

_ Preciso tomar uma atitude. Está na hora de mudar. Sou jovem ainda, procurarei fugir sim, deste lugar. Levou a cadeira até a um canto da parede, na penumbra, virou as costas com desdém e foi até a porta. Fechou o seu passado.

Observou a rua, e depois seguindo em direção a uma cerca viva que a separava da casa de seu amigo, rapidamente voltou ao seu porão. Mais tarde ele foi encontrá-la:

_ Resolvi ir embora.

_Até que enfim você se decidiu. Hoje um trem de carga levará alguns passageiros judeus. Você irá com eles. Já tem os documentos e algum dinheiro que será o necessário. Irá para a França, e estará a salvo. Tenho amigos que a acolherão e a ajudarão a embarcá-la para Israel.

E assim foi que aconteceu. Tudo correu bem. Não houve nenhum problema que a impedisse, somente a falta de coragem de abandonar o passado e ir embora.

Com a chegada a Israel ela iniciou uma nova vida.

Hoje olha as fotografias que sempre trouxe consigo e recorda o que aconteceu com todos daquela casa, e sua cadeira azul-clara, procura compreender por que tudo ocorre no tempo certo. Eram todos prisioneiros de sua raça; pelo preconceito, riqueza e prestígio eram tão perseguidos e ela agora na terra prometida onde chegou sozinha, sem nada, conseguiu sobreviver. Sua família renascia no tempo certo, com cara nova, neste rosto de seu filho, nesse país onde ela firmava novamente suas raízes.



Criado por Lavínia Ruby em 06/11/10. mariegracev





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