28 de setembro de 2021

Que Remédio

 

Que Remédio - Por L.R.

 


Aquela mulher maltrapilha que está sentada encostada no murinho daquela calçada...Aliás...Que péssimo estado de conservação, e em uma das avenidas marginais mais movimentadas dessa cidade. Estão passando alguns transeuntes, mas por aqui são poucos, e ela automaticamente está estendendo a mão pedindo esmola. Seus cabelos estão bem compridos, desordenados e grudentos, o rosto está magro e macilento, porém conserva seus traços que são bonitos e finos; suas mãos estão encardidas e as unhas maltratadas, seu vestido preto de tecido fino está sujo, rasgado debaixo do braço e corroído nas barras. Cobrem-lhe as pernas bem feitas, estendidas, que estão atrapalhando a passagem das pessoas que estão espantadas com aquela figura saída de um conto de fadas, como se a princesa virasse mendiga, mostrando o que a pobreza pode gerar: a imundície, a fome, a derrota. Ao seu lado deitado está aquele cão, mas que ali não deveria estar, mas que se esconde debaixo daquele cobertor, espiando, e parece que sabe o perigo que o acometerá se dali sair. Acho que é um vira-lata - não se ofenda - que daqui não dá para lhe ver direito - por enquanto - a não ser que você resolva sair de onde está escondido. Bem, o que uma jovem de tão “boa aparência” está fazendo na calçada pedindo esmola e tendo como companhia um vira-lata? Ah! Mais lá na frente, não muito longe dali, aquele garotinho... Só oito anos e pede esmola no farol. Que absurdo! Agora compreendo a presença do cão. Deve ter chegado e o garoto quis ficar com ele e sua mãe - ela é a mãe dele - autorizou. Autoriza tudo...Decerto. O que ela quer, ele faz; obediente este menino”.

Assim o dia está passando, a tarde vem caindo e ele já está voltando e dizendo:_Vamos, mãe! Já consegui alguma coisa para matarmos a fome. Está tirando o cãozinho debaixo da coberta e ele lambe suas mãos e fareja o saquinho de plástico que ele segura. A mulher está olhando para ele desnorteada, interrogativa e no seu semblante um sorriso está se desenhando. Segurou aquela mãozinha que ele lhe estende aflito, mas não se ergueu; fica a olhar o seu rostinho. Na sua mente muitas coisas devem estar se desenrolando como num filme, fatos de um passado não muito distante, mas que para ela é só confusão; uma mescla de cenas esmaecidas e nítidas e as pessoas e os lugares vão saindo da obscuridade. Deve estar contemplando essas imagens porque, enquanto isso, lentamente abre e fecha os olhos procurando entender onde viveu recentemente os mais sofisticados de seus dias; deve recordar também fatos anteriormente vividos em um lugar fechado, triste, onde estava encerrada e pensava sofrer maus tratos, seria num hospital ou numa prisão onde estava com seu filho pequeno, amamentando...Ela olhava através das grades aquele homem, sim, um homem rico, um empresário poderoso. Seria ele o causador de sua desgraça? Ela bem jovem, uma mulher morta, um padre, um interrogatório, ela acusada, um carcereiro, um médico, o hospital, o filho, a prisão, a alienação, a internação, o homem, outra vez o homem. Ela tem consciência agora, está tudo claro. Recorda-se de tudo. Sua mãe morta era aquela mulher. Lembra-se do seu filho pequeno, da separação dele, dos dias de isolamento, dos meses, dos anos, da existência sem perspectivas, das lembranças que a infernizavam e que queria insistentemente até à insanidade esquecer; a sua culpa, a desgraça de ela mesma se surpreender naquele seu ato absurdo e esse inferno de querer relembrar e ao mesmo tempo esquecer aquelas cenas; o que seria para seu bem? Já não sabia mais, as mãos nervosas na cabeça, o aperto no peito pelo abandono de seu filho ou por o terem tirado? O longo desespero, depois a alegria e a satisfação por tê-lo de volta, de lhe ter sido devolvido, de estar com ele ali segurando sua mão. Nada mais lhe importa. No seu semblante a lucidez e a felicidade”.

Agora finalmente levanta-se e parece tão decidida e segura do que está fazendo, nada terá mais importância nesse seu passado; as apreensões lhe fugiram, bem como o abatimento, o desconsolo”.

Está caminhando com seu filho, seu menino carregando o cãozinho. Ele tão pequeno, tão inocente, encontrou um amigo que o diverte. Ela o olha e continua a recordar: sabe ter cometido o crime, mas não era já dona de seus atos. Era violentada pelo amante de sua mãe, que não sabia do que acontecia e que o amava desesperadamente. Esse homem que lhes dava tudo. Sendo jovem e indefesa, vítima dele, ficara transtornada; um pavor tomava conta dela, queria fugir e várias vezes nas ruas desertas, com muito medo, voltava correndo para casa, tentando refugiar-se no colo da mãe, contar-lhe tudo, mas não tinha coragem. A mãe era nervosa, agressiva, bebia, e era extremamente infeliz pelas paixões do amante; mas o fato é que engravidara, e a sua mãe quando percebeu o que estava acontecendo, enciumada, violenta, com ódio dela, queria que ela tirasse a criança. Ela alucinada pelo drama que sofria, tentou se defender das agressões de sua mãe e acabou causando a morte desta com o próprio punhal que ela havia lhe agredido. Ela não soube se defender daquele homem poderoso, que responsável por tudo, inclusive pai de seu filho, consentiu que ele dissesse que ela se entregara a ele, porque quisera. Este mesmo homem tentou livrá-la do crime, mas ela estava enlouquecida e se dizia assassina, culpada, não sabia como contar que havia sido em legítima defesa. A criança nasceu quando já estava internada naquela casa de repouso, e assim ficou entre a cela da prisão e o tratamento. Depois de alguns anos, liberta, com seu filho ao lado, não se lembra decerto por que veio parar aqui, na rua. O que seria melhor para ela, afinal”?

Segue o filho, satisfeita por estar com ele. Moram juntos debaixo daquele viaduto. Encostaram-se em um canto; dois pães; algumas frutas; se enrolaram no cobertor que aquele cãozinho divide com prazer”.

Observo-os de longe. Depois me aproximo”.

Ela me reconhece, sou o mesmo que a violou. Olha-me assustada. Seguro-a pelo braço, dou a mão ao menino que já está me acompanhando ansiosamente, e os conduzo até meu carro estacionado na rua ao lado do farol, naquela marginal. Quanto me custou a encontrá-los desta vez”.

No seu rosto que eu amo, lindo, sujo, de gata borralheira, o desespero. Um vazio dentro da cabeça. Não se lembra de mais nada. De novo a alienação. Melhor assim. Entra no carro. Lá dentro ela se encolhe, apaziguada, quase calma, lhe invade uma alegria, só várias imagens brincam coloridas, músicas, fantasias, joias, vestidos coloridos”.

Meu filho me olha com ternura e admiração. Eu lhe ofereço aquele brinquedo há dois meses guardado e o abraço tentando conter a emoção que está a aflorar nos meus olhos”.

_ Não, não posso viver sem vocês. Vamos para casa! Não me fugirão de novo!

Lá atrás, debaixo do viaduto, enrolado no cobertor, esquecido ficou o cãozinho vira-lata.

Escrito por Lavínia Ruby em 04/09/2013. mariegracev

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