28 de setembro de 2021

Passatempo

 

Passatempo - Por L. R.




É o mar,

o imenso mar,

o mais profundo mar, a minha paixão.


Havia tempos que eu agarrado à minha prancha estava procurando desesperadamente me manter vivo. As mãos estavam cansadas, os braços doloridos, a fronte, as faces, os ombros, as costas vermelhas e queimadas e aquela perna em brasa. A sede estava se tornando insuportável, mas não queria me submeter, não perdia a esperança, me negava a isso.

Mais que qualquer coisa, a minha fixação era a prancha de surf. Não procurara outra coisa para fazer em minha miserável vida. Quando me passava pela cabeça ficava satisfeito de que a minha adolescência a houvesse passado nas praias, na boa vida, cabulando aulas, deixando minha mãe quase louca comigo por não corresponder às suas expectativas em querer que eu fosse mais que um esportista. E isso eu era e amava. Como deixar esse mar de lado, esse azul ou essa cor cinzenta que me fascinava, que me chamava e essa água que era para mim o mais necessário, que envolvia o meu corpo bronzeado, sarado, malhado e que era o objeto de cobiça de qualquer garota, dessas gostosíssimas que ficam na areia se exibindo e deixando a rapaziada louca de desejo? Eu era e sempre serei mais apaixonado é pelo mar, pela sua majestade, pelo seu colosso, suas espumas que acolhiam meus pés fazendo festa e que traziam junto com elas as suas ondas que era o que me enchia de prazer e gozo. Com vinte e dois anos, quanta onda eu conseguia transpor, quantos túneis d’água eram por mim desvendados e eu herói. Quando fora, na praia, era aclamado e coberto o peito com a medalha de campeão e entre risos e contentamentos, enfim, encontrava o rosto sério de minha mãe que não se conformava e eu sabia decepcionada comigo. Ela se retirava tristonha e se refugiava nas casinhas simples dos pescadores e entre as companheiras separava os peixes para a venda e para o jantar. Por que iria querer aquela vida de pescador, eu não queria, detestava pescar me recusei a ser como meu pai. Não digo que ele não tenha sido um grande homem, ele foi, e sempre debaixo de sol e chuva saía mar adentro, mas um dia não voltou, o mar levou. Eu não me importei em trabalhar meio dia ajudando na entrega dos peixes, dos pescados e assim ainda conseguimos viver, mas a minha vida era outra, nunca quis ser pescador. Não sou também nenhum ignorantão que não saiba ler e escrever, mas daí a ficar em um banco de escola, não, meu jeito de ser era aquele, ali, na areia, no sol e sobre a prancha de surf que era o meu passatempo. E em quantas praias eu procurei e esperei as ondas, dias a fio. Quantos lugares eu descobri e eu já deixei para trás; quantas derrotas e quedas eu superei para aprender; quantas ondas grandiosas vieram e eu quantas vezes fui tragado por elas; quantas vezes engoli água salgada, quantas vezes voltei esfolado, machucado, cortado, e irritado, mas com aquele desejo de superação. Ele não vai me engolir, maldito mar, não vai me engolir, e eu ria aquele riso solto, eu gargalhava e o mar rugia, parecia levantar ondas mais altas ainda, vergastadas medonhas, uma coisa impressionante. Eu da praia ficava só vendo aquele mar perigoso e analisando, me imaginando erguendo junto com o monstro, naquela altura e depois apontando sobre ele, altivo, na minha prancha, no meu passatempo, na minha maior vitória. E consegui. Lembro-me a primeira vez. Foi uma doidice sem tamanho, mas subi junto com ela e deslizei como se em uma pista encerada estivesse. Ergui os braços, me equilibrei, dobrei um pouco o corpo e depois direcionei a prancha em direção ao túnel formado pela onda e ali eu entrei e o atravessei. Era azul, e as gotas me borrifavam, mas dentro era um espaço incrivelmente seco e extenso e não acreditei estar atravessando por um lugar assim. Que júbilo então senti ao sair dele. Mas ninguém viu, ninguém assistiu, ninguém vibrou comigo. Eu estava só naquela tarde chuvosa e deserta. Só eu vi, senti e chorei de alegria. Era meu triunfo sobre o mar.

Depois de tantas e tantas ousadas aventuras em muitas e muitas praias desconhecidas, longe de casa, olvidadas por outros mas não por mim que não tinha compromisso com ninguém a não ser com meu passatempo, o surf, o pior veio a acontecer em minha vida. Custo a acreditar que ainda estou vivo. Depois de me julgar infalível em minhas manobras, fui surpreendido com o rochedo que a onda ingrata camuflou, e eu ferido mas ainda agarrado à minha prancha, fiquei mais morto do que vivo ao sabor das ondas e fui levado de volta ao mar aberto. Sei que fui mais um escolhido por Deus para que engolisse junto com a água salgada o meu orgulho, deixasse de olhar o mar com desdém. Impediu-me, por Sua vontade ,que continuasse nessa louca vida.

Depois de ter quase perdido a esperança, o acaso me trouxe até aqui. Quase me julgava um cara morto, mas mesmo assim eu estava agarrado àquela tábua de salvação, não estava mais sobre ela, minha forças não permitiam que eu subisse e eu me deixava levar pelas ondas agora quase amigas, calmas, como se reconhecessem em mim aquele maluco que não se deixava dobrar.

O mar me arrebatou, me machucou, me fez ver reconhecida a sua fortaleza, mas quis que eu me reconciliasse com ele, quis que eu soubesse encontrar nele não somente o prazer. Essas ondas que eu dominava... escondiam o perigo.

Bem! O mar, mãe, me jogou na areia da praia dessa ilha. Se alguém vier até aqui, se alguém me achar por acaso um dia, encontrará um pobre surfista manco, que o melhor passatempo que encontra é pescar para não morrer de tédio. Ironia, mãe?


Escrito por Lavínia Ruby em 22/10/11. mariegracev

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