23 de setembro de 2021

Dúvida de Diva

 

Dúvida de Diva - Por L.R



Difícil seria talvez você aí de fora imaginar o que se passa aqui dentro dessa casa de malucos. O certo é que existem muitas pessoas perambulando por aqui e nelas formigando aquelas variedades absurdas de ideias que existem, não só em uma cabeça louca pensante, mas nas demais cabeças das pessoas que trabalham aqui, de onde poderão até sair coisas inacreditáveis.”

Olhando os semblantes, você julga que cá há também pessoas normais, dentre os anormais, que os rostos que se apresentam aos meus olhos - que gostariam de ser penetrantes atravessando os cérebros e perscrutando a alma - pudessem ler, para desvendar, descobrir esses pensamentos entranhados que ninguém, só Deus e o próprio ser conhece. Mas sabe-se que cada um pensa diferente, cada um imagina com seus próprios botões seus sentimentos escondidos, ocultos, que só cabe à própria pessoa revelar. Mesmo que ela diz falar o que pensa e insista em dizer que é aquilo mesmo, sempre haverá a desconfiança, não é possível confiar que ela está sendo sincera; sempre duvido delas.”

Pois, assim procedem os malucos. E também os normais. Assim, essa gente que ora está sentada nos bancos, nos cantos ou caminhando distraída pelos pátios gramados, ora feito sonâmbulo, ora de olhos bem abertos atravessando esses corredores apertados, ora encerrados em quartos claros ou escuros ou de iluminação frouxa, onde as paredes descascadas são rabiscadas ou desenhadas por artes indecifráveis, tal são os enigmáticos rabiscos que enfeitam esse ambiente depressivo onde a mistura de ideias mostra sua incoerência. Mas tudo que identifica uma pessoa ser um louco, desequilibrado, também é constatado no normal das pessoas que tomam conta daqui. No refeitório, naquela parte onde se reúnem funcionários e médicos para conversar sobre o destino dos outros, se vasculharmos um pouquinho, se cutucarmos um pouquinho, se travarmos um pequeno diálogo, veremos essa loucura na inveja, na insatisfação, no ciúme, no despeito, na crueldade. Não são olhos do bem, sim uma corja, uma máfia, que articula para fazer mal, que está realmente interessada que as coisas caminhem em desalinho com os objetivos traçados e cujo fim é degradar mais ainda com a saúde de nós, infelizes, que mal sabemos ou damos conta que ninguém quer o nosso bem, que mesmo os de fora que raramente aparecem para uma visita, não são sinceros também, não estão nem aí para o nosso destino desde que aqui estivermos encerrados, e o que fazem no máximo é deixar alguma ajuda em dinheiro para que não vejam por mais um bom tempo seus parente infelizes. Que vida sem significado a nossa. Quanta gente que na alma não tem sangue bom correndo.”

Por que tem que ser assim? Não dá para entender a que ponto chegam as pessoas que ,de repente, não sentem nenhum sentimento pela outra, que se afastam totalmente, porque nós passamos a ser um estorvo. E os outros? Pouco se lhe dão que estejam ali presentes, a seus cuidados. Querem cada um defender de uma maneira qualquer a sua tranquilidade e em função disso, nos maltratam. Isso é possível ver na tristeza de cada um de nós, no nosso nervosismo, na nossa angústia.”

Juarez é um desses que trabalha aqui, e creio que já faz tempo que o faz. Lá está ele. Mas por que é diferente? Por que eu o quero diferente?”

Já coloquei todos em uma balança e me pego a analisá-los e aos seus sentimentos, e em cada, só vejo a falsidade: a indiferença nos “normais”e o alienamento nos demais. Falsidade dos que conosco trabalham e que não visam a nossa cura, e o afastamento dos nossos parentes.”

Está falando comigo. Encontro em Juarez uma ilha. É diferente de todos. Como descobri essa diferença? Quando me dei conta que um dia em meus momentos de lucidez ele chegou até mim, passou a mão em minha cabeça, sorriu com sinceridade e disse:”

_ Está melhor?

_Sim estou! Sumiram as tonturas, estou pensando e relembrando momentos mais alegres de minha vida, parece que momentos tristes se apagaram, finalmente.

_ Continue assim. Observe o dia, a natureza, o céu, as flores, vê como tudo é mais bonito quando você se preocupa somente em se voltar para o mundo de fora?

_ E me deu algumas revistas de viagem para eu ler.

_Você imagine que um dia irá sair daqui e viajar por esses vários lugares.

Sentou-se ali perto e me explicava sobre os lugares mais bonitos que existia, que ele já teria visitado. Fiquei olhando seu rosto, e vi como era bonito, não podia haver ninguém mais bonito que ele.”

_ Eu não estou muito empenhada em sair daqui. Nem mesmo acredito que vai ser possível. Parece que todos à minha volta não querem me permitir isso.

Porém, nos olhos de Juarez eu vejo sinceridade. Creio que é uma pessoa em quem eu posso confiar plenamente. Ele me oferece segurança.”

O tempo vai se esvaindo, essa conversa vai se tornando cada vez mais constante. Estou confiando muito em Juarez e ele com aquela alegria que antes lhe era tão peculiar, agora parece preocupado.”

Ele me acha linda, está se envolvendo, e isso mostra no seu sorriso que me penetra como uma lança. Sei que está tomado de paixão e será fácil fazer de mim sua amante, mas ele sabe que olhos nos espreitam de todos os lados, que já descobriram essa cumplicidade manifesta nos nossos atos e nos nossos sorrisos. E nos nossos diálogos me diz isso, o que o deixa triste porque não pode pensar no seu futuro comigo. Seria impossível.”



Diva sabe que aquele ambiente é hostil à cura de qualquer um, não ignora que todos ali se encontram dominados de alguma forma por circunstâncias lá fora que os rejeitam. Ela por sua vez se julga prisioneira de sua própria família, porque é rejeitada por ela em benefício da mesma. Diva é uma dessas pessoas de família rica e tradicional que, contudo, não lhe é permitido se valer de sua fortuna que está nas mãos de um autoritário tutor. Os pais morreram muito cedo e comprovada sua fraqueza psicológica seu tio se valeu de sua doença para tomar conta de tudo e manipula-a a seu bel-prazer. Diva tem certeza de que Juarez reconhece que é urgente retirá-la dali e está empenhado em arquitetar um plano de fuga, porém, não quer explicar isso a ela ainda, decerto acha que irá malograr se ela ficar sabendo, pois, com certeza ela se denunciará. Não irá disfarçar, ela tem medo. Lê-se em seus olhos que quer se jogar em seus braços com toda a confiança, mas que ao mesmo tempo fica demasiado nervosa para fugir com ele, para enfrentar a situação longe dali, com o que viria a acontecer depois, sendo perseguidos. Ela sabe que ele sofre por saber que não poderão levar avante esse amor dentro desse lugar e ela quando está longe só quer vê-lo, procura-o em todo o lugar e todas as vezes que está no pátio, nos corredores ou na sala de refeições se aproxima sorrindo, brincando. Como lhe faz bem a sua companhia! Ele então se faz presente, mas sabe que aquilo não acabará bem, já estão providenciando para que não lhe seja permitido seus encontros e ele sabe que deve evitá-la como já o haviam alertado para que não se aproximasse dela. Está sendo constantemente vigiado. Sua situação ali dentro está ficando difícil. Além disso, o estão ameaçando de demissão e se acontecer será impedido de vê-la definitivamente, então ele acata as ordens e ela o vê sendo remanejado para outra ala. E isso tudo sob os olhos vigilantes, deslumbrados, angustiosos, lacrimejantes de Diva, que assiste àquele afastamento, o vê sendo levado até seu distanciamento e o perde completamente.



Agora Diva está só e no seu desespero pensa que é melhor morrer, pois, não está mais aguentando ficar sem Juarez, mas ela também começa a se revoltar contra aquela situação. Às vezes se encontra no jardim e começa a vagar por ali e por aqui observando as árvores que rodeiam os pátios procurando uma saída, sua cabeça gira, gira como um redemoinho ao olhar essas copas frondosas. Outras vezes tem um ataque de raiva e nervos e chora e grita querendo sair e se vê submetida a injeções para que se acalme. Quem “cuida” dela são duas daquelas enfermeiras que parecem loucas e que a odeiam e que são completamente sádicas, não há qualquer situação a que elas não façam Diva se submeter à alguma tortura. A amordaçam e usam de choques e banho de mangueira e de remédios para com isso satisfazerem sua vontade de judiar dela. Assim Diva, anda dopada. À noite, porém, de repente acordou mais ou menos lúcida e olha em torno e descobre uma ou outra sentada na cadeira adormecida ao seu lado. Ainda finge dormir para que a julguem calma e aguarda que por ali passe o médico para a ronda noturna. Acha que não terá nenhuma saída a não ser que se controle, então talvez a deixem mais livre, afrouxem esse sofrimento que é obrigada a passar.

E assim acontece. A oportunidade é agora, nessa troca de plantão. Ela está só no quarto, finge estar adormecida quando nota a porta entreaberta. Esgueira-se por ela e como não há vê ninguém no corredor, vai cautelosamente até o ambulatório. Ele está deserto. Vale-se de um daqueles bisturis que se encontram por ali, uma tesoura, bem como algumas faixas, e sorrateiramente se encaminha para fora. Atravessa o pátio. Alguns enfermeiros conversam sob o avarandado, os quartos em silêncio, quase todos estão adormecidos, mas ainda se ouve alguns gemidos e lamentos abafados. Procura andar mais rápido e no escuro quase não dá para distinguir pouca ou nenhuma coisa, mas andando por ali, observa um vulto sentado, só, em uma poltrona e parece vislumbrá-la, pois, olha em sua direção e ela agita suas mãos para ele insistentemente.

É Juarez. Então ela se aproxima, não hesita nem um pouco, chama-o enquanto se esconde atrás de um arbusto. Ele nota imediatamente sua presença. Ela diz quero ir embora,vou tentar fugir. Ele levanta-se depressa e juntos atravessam o pátio rente ao muro, na penumbra. Vão devagar e quando perto do portão avistam as sentinelas e ela lhe oferece o bisturi e fica com a tesoura. Ele não acredita que ela terá essa coragem. Quero ir embora, custe o que custar. Ele sabe que para passar terá que usar de violência, não quer isso, não será capaz, mas ela sim, não está mais disposta a voltar, então ele consegue dominar um dos guardas amordaçando-o e ameaçando-o com a faca, mas ela descontrolada, por demais furiosa, completamente fora de si apunhala o outro com a tesoura várias vezes e Juarez a retém com energia e a arrasta. Com as chaves tomadas dos guardas abrem os portões fugindo em desabalada carreira pelo terreno baldio que se estende à sua frente, e correndo os dois, sabem que é quase impossível fugir a pé, serão perseguidos e então agacham no capim orvalhado e Diva ouve o toque da sirene avisando de sua fuga. Sabe que mais cedo ou mais tarde os pegarão.


_Não! Não! Não quero voltar! Me soltem! Me larguem!

_Diva! Diva!

_Dr. Juarez!

_Adormeceste no divã durante a sessão de terapia!


Ela olhou-o espantada e interrogativamente. Novamente gerou a dúvida em Diva. Ele parece tanto com seu tio.


Escrito por Lavínia Ruby em 23/07/11. mariegracev


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