Dezessete horas e trinta minutos - Por L.R.
Dezessete horas e vinte minutos, precisamente, em nosso relógio de parede antigo que ficava dependurado na parede da sala retangular. Esta era guarnecida por uma pintura de meu pai e minha mãe quando recém-casados, emoldurados em um quadro. Havia também uma foto isolada de meu irmão menor, como um bebê, de cabelos encaracolados e outro, onde se víamos nós cinco, os irmãos todos bem vestidos. Eles de terninho de calça curta, minha irmã e eu de vestidinhos rodados, meias soquetes e sapatinhos fechados. Todos nós tínhamos um sorriso, mas eu sorria mais; desde sempre gostei de sorrir, pois, me achava assim mais bonita. Em cima da cristaleira que suportava o peso de uma vitrola, encontrava-se também um pequeno barquinho de madeira sobre uma toalhinha de veludo bordô, onde se desenhava em alto relevo, um ramo de rosas. Também sobre a mesa de madeira escura, quadrada, via-se o caminho de mesa bordô com rosas da mesma aplicação. Esta mesa era contornada de cadeiras estofadas castanho-escuro. Havia também nesta sala duas cômodas grandes, onde mamãe guardava seu enxoval de cama e mesa. Esse armário, foi para mim, assim como as malas que ficavam em cima do guarda-roupa, um grande motivo de curiosidade. Gostaria de remexer naquilo tudo e descobrir seus mistérios.
Saí dessa sala correndo. Tinha então dez anos de idade, fui até a salinha de estar onde um jogo de sofá amarelo com suas poltronas, vermelha e azul, uma mesinha de centro e um guarda chapéu compunham a decoração. Na parede um quadro grande da Arca de Noé.
Debrucei-me na janela da salinha e uma pessoa, um homem me disse:
_ Chame sua mãe! Eu gritei: _ Mãe! E ela veio ver o que era. Ele disse:
_Seu pai morreu. Caiu no rio.
Até àquela hora eu não sabia o que significava aquilo de morte, não havia sentido, o que era alguém tão próximo deixar o mundo? Olhei mamãe, seus olhos se encheram de água, trêmula. Papai já subia as escadas, e depois desse momento, quando todos parentes e vizinhos já estavam a par do acontecido, papai alugou um táxi e partimos para a fazenda.
Era de noitinha, quando chegamos. Cheio de gente da vizinhança, muitos fazendeiros da região, muitos colonos, muitos parentes. A casa da fazenda estava cheia de gente. Meu avô deitado no caixão na salinha de frente do alpendre onde brincávamos, enquanto ele fumava seu cigarro de palha, sempre muito sério. Não me lembro nunca de tê-lo visto sorrir. Aquele coração agora parado não deve ter tido muitas alegrias; morreu muito cedo a esposa, depois de dar a luz treze filhos, dos quais onze sobreviveram. Ela se matou um dia, tomando veneno; seus filhos, somente dois homens pra cuidar da fazenda ficaram doentes, sendo que o mais moço faleceu em um sanatório e o outro sobreviveu muitos anos após a morte de meu avô, mas doente mental também. Nos primeiros anos ainda saía perambulando, me assustando ás vezes quando parava na frente do escritório onde eu trabalhava e ficava me olhando, como se me reconhecesse. Eu só ficava com muito medo, não sabia o que fazer nem como falar com meu tio, ele era completamente fora de si, mas depois se enclausurou dentro de casa e depois em uma cama. Meu avô creio que deve ter ficado desesperançado da vida depois de ver que os seu dois únicos filhos homens que tinham tão boa saúde ficaram assim depois de adultos. Bem, eu até hoje não sei os motivos, mas penso que deve ter sido rixa entre eles, de problemas de terra. Meu avô, disseram que também havia tentado o suicídio, mas depois realmente aconteceu, diziam que ele teria se jogado no rio, não era problema de coração não.
Naquela noite, como em todas as noites de minha infância, que eu sei que foram sempre povoadas de seres assustadores que minha imaginação convivia, é que sempre tinha alguém para contar casos de assombração, fantasmas, mulas sem cabeça, mulheres do tamanho de um poste, mundo que ia acabar, inferno merecido e cheio de chamas. Bem, acho que o inferno era ser criança naquele tempo.
Então eu penso que sendo hoje o que sou, até que suportei bem todas essas provações, e creio ser uma pessoa que não encaro mais a morte com medo. Sinto até curiosidade para saber se do lado de lá todos esses mistérios serão resolvidos, porque não é fácil viver cheia de dúvidas e perguntas.
Naquela noite na fazenda, tomamos minhas primas e eu, um trilho, no escuro, para irmos até a casa de minha tia, que era encostada na casa de vovô. Algumas maiores, apesar da situação até que riam, bem eu não sabia do que, com tanta gente chorando. Mas eu achava que elas estavam nervosas e medrosas. Seguimos até lá enquanto no velório rezavam-se terços, um após outro. Creio que dormi na casa de minhas primas, não me lembro de como, nem onde amanheci, acho que devo ter saído de minha razão, porque essa parte eu esqueci. Só me lembro da manhã seguinte em que o caixão foi colocado sobre a carroceria de um caminhão e o cortejo seguiu até o cemitério local, onde meu avô foi sepultado junto com minha avó.
Minha mãe e minhas nove tias usaram luto, roupas pretas por um ano inteiro. Olhava minha mãe, e como gostaria de vê-la novamente alegre, com vestidos coloridos e saindo de novo de casa. Foi um ano extremamente difícil para todos. Eu criança não entendia muita coisa, sobre terras, inventário, relações familiares. Como é bom ser criança.
Hoje adulta, passando pela mesma experiência por que passaram meus pais, tendo-os perdido, mas em circunstâncias normais da vida, vejo o quanto eles significaram na minha formação, de meus irmãos e na nossa felicidade.
Tivemos momentos tristes também, mas não no ponto que sofreram meus avós. Gostaria de saber os motivos que os levaram a retirar da vida assim, mas sei que eles devem tido uma depressão muito profunda e ninguém para ajudá-los.
Rezo muito por minha avó que não conheci, meu avô que eu amei tanto e meus tios que eram tão alegres, risonhos e bonitos e quantas vezes nos levaram em seu jipe e em sua camioneta para passearmos.
Sempre quando vou ao cemitério, rezo para meus pais, e nunca esqueço desses avós e meus antepassados que estiveram nesse mundo e agora devem estar em outro muito melhor, porque tudo que a gente tem que penar com certeza é aqui na terra.
Baseado em fatos reais escrito por Lavínia Ruby em 01/07/10. mariegracev

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