Depois da Grade... A Jardineira - Por L.R.
Então se lembrou que conseguiu transpô-la. Havia sido muito perigoso na certa. Saltara com vigor e se prendera em suas pontas e arranhara as pernas, mas não recuara, estava do outro lado. Mas esse pensamento de poder se ferir não era jamais o que o impediu de fazer o que queria. Era muito curioso. Queria descobertas.
Sempre tinha quando criança aqueles arroubos de se lançar, mais alto e lhe incentivavam desde cedo e o usaram meticulosamente para as suas ambições pessoais. Ele sabia capaz, mas se dominava. Era uma criança criada em um abrigo, depois adotada. Pertencentes a classe média, seus pais adotivos o sabiam capaz e o elogiavam perante os outros amigos, cobrindo-o de mimos e apostavam em seu futuro sabendo-o diferente. Mas ele não queria essa diferença, julgava só estudioso e se negava a ser diferente. Mas era notado e foi na escola o líder, tanto nas notas máximas em sua classe, mas à frente de seus colegas o primeiro em ideias. Era uma pessoa madura na adolescência com pensamentos de fazer inveja. Destacava-se de todos da turma na escola secundária. Pertencera ao grêmio estudantil, eleito por unanimidade, tanto pelos mais fracos como pelos estudantes mais ardorosos e críticos. Era admirado por todos os professores que diziam ser dele um futuro brilhante, bastaria que com isso soubesse escolher o que seria. Mas todos asseguravam que em qualquer ramo que por ventura viesse atuar teria pleno êxito.
No profundo de seu ser, apesar de toda essa capacidade nata, ele não se orgulhava de ser assim. Era uma pessoa simples por dentro, humilde, que nunca deixou que essa capacidade, ou melhor, facilidade, viesse subir na sua cabeça.
Quando terminou o curso secundário teria que escolher a sua Universidade. Seria fácil passar pelo vestibular e entrar em qualquer Universidade Pública e ser aprovado entre os melhores colocados.
Mas tudo o atraía. Queria tudo ao mesmo tempo. Sempre apaixonado pelos livros, pelos diversos autores, lendo jornais, revistas, debatendo com altos mestres de várias disciplinas que admiravam seu saber, os enfrentava com toda convicção e segurança.
Quando em casa no seu quarto abria o seu computador, dali tomava conta, como se ele próprio o houvesse criado, acreditava ser um cientista. Então por tudo que sabia, pensava como era que iria ficar cursando qualquer curso se já estava por dentro do seu conteúdo. Isso o entristecia, não era feliz por isso, alguma coisa no seu íntimo não ia bem. Tinha plena convicção de não poder passar para os outros que ele era muito mais do que qualquer um havia, até então, conseguido. Aquele poder, aquela sabedoria acima do normal, era uma doença? À noite pensava que deveria seguir em frente e ele depois de se revirar na cama, decidiu, iria trabalhar em Ciências Médicas. Precisaria fazer bem às pessoas, quem sabe encontraria também para si uma fórmula de ser normal, de reverter esse dom.
Assim ingressou na Universidade e no decorrer desta, fez diferente, procurava cometer erros e se colocava sempre que possível em condição de se igualar entre os mais estudiosos, não além deles. Não queria que o percebessem, não queria se destacar. Mas em casa, no laboratório particular estava ele elaborando suas pesquisas e descobrindo coisas inacreditáveis e com um brilho incomum. Sabia que se as pessoas soubessem que ele tinha muito mais poder além do que já supunham, o explorariam mais ainda, e ele não queria jamais ser corrompido ou contribuir para fazer algo que prejudicasse as pessoas. Procurava, como sempre, pautar suas descobertas com certo domínio equivalente aos outros cientistas. Ganhava muito bem e dividia seu êxito profissional com seus familiares que esbanjavam orgulhosos o seu dinheiro, mas sabia que para eles só era visto como fonte de renda e não como um ser humano cheio de sentimentos. Isto desde criança, no abrigo, quando lhe indicaram a aquela família como criança especial. Amor! Não sentia que era amado. Mas o amor que sentia pelas pessoas existia e o consumia. Mas não era feliz. O que lhe faltava? Não se importava de não ser admirado, queria ser amado. Parecia que sua cabeça estava sempre ocupada por coisas mil que não esvaziava nunca, sempre trabalhando, processando, incansavelmente. Mesmo a noite sonhava que solucionava cálculos, escrevia velozmente, traduzia e lia livros de páginas intermináveis e grossos de uma prateleira descomunal e sem fim. Acordava com os olhos ardendo, a boca seca, e o corpo cansado.
Qual seria sua salvação?
Não queria ser mais assim. Como tinha inveja dos jovens normais que atravessavam a rua com um grupo de colegas cantarolando músicas populares e ele pensando em mil e uma composições e arranjos mais difíceis e ouvia essas músicas ao som de um piano como se não fosse desse mundo. Olhava para uma pessoa e estava sempre analisando-a de mil em uma maneira, desde o seu corpo até a sua mente, além de todos os seus atos, o seu jeito de rir, falar, tocar, andar, olhar. Nenhuma pessoa para ele, que assim compreendia em sua capacidade, era o que representava ser. Via a falsidade, via-a coberta de uma cera que poderia ser a qualquer tempo derretida e mostrado o que ela era na realidade. Tudo era estudado pela sua mente. Mas, ele sabia que nesta capacidade inexplicável e incrível, dentro de si não tinha o que via nas pessoas, ele era sincero, ele era incólume, dentro dele não existia a maldade. Enxergava-a nos outros, mas em si não.
Por quê? Cada vez mais desenvolvendo o seu raciocínio, a sua sabedoria que não tinha limites, procurava chegar a uma conclusão e essa foi que quanto mais sabia, mais bondade nele se desenvolvia. Parecia que uma coisa era subordinada a outra. Em suas pesquisas na Universidade onde procurava mais que tudo conter o que sabia, como uma usina que detém toda uma pressão da água e vai desaguando aos poucos, assim ele se comportava. O que conseguia financeiramente com seu trabalho ele não guardava para si, entregava aos outros, fazia mil caridades, encontrava assim uma justificativa para ter nascido assim.
Questionava ter vivido tanto tempo sem compreender na sua infância e na sua adolescência, não ter associado a sua sabedoria ao seu espírito de fazer o bem. Mas daquela vida, estava cansado. Não queria mais vivê-la. Não conseguia mais se controlar, não conseguiria mais esconder de todos o que conhecia, não conseguiria se dominar mais. Eram conhecimentos que não o deixavam sossegado. Então pensava na morte na forma mais profunda que alguém poderia imaginar. Que significado teria cometer um suicídio, um homem que trazia a bondade dentro de si? Parecia que estava prisioneiro de sua vida, que nascera para servir ao mundo, não a si mesmo. Mas se sofria por isso ele não era totalmente bom. Detinha-se nesses pensamentos também, como na sua teoria que a bondade está inserida no conhecimento. Isso era válido? Quem lhe confirmaria isso? Dúvidas não havia quanto à existência de Deus. Apegara-se a religião, rezava no silêncio da noite e chorava ao mesmo tempo em que ria de si mesmo. Sentia-se sozinho. Tinha medo de se unir a alguém. De ter filhos. Como seria ele? Herdaria essa capacidade? Não queria. Era sofrer muito.
Saiu de noite, silenciosamente. Alguma coisa lhe dizia que caminhasse para pensar. Mas ele achava que iria ser invadido de novo pela análise das coisas, pelo seu aprofundamento, então caminhou depressa, começou a correr, correr como um alucinado, e era tão rápida aquela corrida que não distinguia mais a forma das coisas, parecia que não teria mais como parar. Ficou com medo, não era capaz de se controlar. E enquanto corria se lembrou em criança, com cinco anos, da grade e do outro lado, a jardineira com flores miúdas, coloridas, dentro de um imenso jardim e como se ferira nas pontas de lança ao procurar transpô-la. E heis que surge a sua frente, alta, muito alta, a grade com suas pontas de lança, e do outro lado a jardineira, e o jardim interminável. Do lado de cá a noite, do outro lado o dia. Do lado de cá o mal, do outro lado o bem e ele nessa corrida louca, não iria parar, iria mais uma vez saltá-la, não era tentativa, não podia se dominar, algo o impelia a isso e saltou alto, muito alto, sobre a grade, e caiu suavemente naquele jardim. Liberto então, compreendeu tudo. Voltara a ser criança de cinco anos que fizera uma travessura saltando a grade que o separava de seu verdadeiro mundo. Estivera lá, mas saltara novamente de volta ao seu lugar. Pertenceu temporariamente àquele mundo, mas não era o dele, agora a sua mente conturbada retomou a paz porque compreendeu o ser superior que era.
Criado por Lavínia Ruby em 08/11/10. mariegracev

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