20 de setembro de 2021

A Entrevista

 

A Entrevista - Por L.R.




Como se vestiria naquela manhã?

Em toda sua vida andara tão mal arrumada.

Em casa, sem perspectivas nenhuma depois de tantos fracassos, de enviar currículos para todo e qualquer canto dessa imensa cidade, nunca andando tanto, não acreditando mais na história que neste país havia aumentado a oferta de empregos e também se dando conta que o dinheiro se tornara escasso mesmo, que havia desgastado todos os seus sapatos, que havia surrado todas as suas roupas, que não era possível mais tomar táxi, ônibus, mototáxi ou que até as caronas já lhe eram negadas de tanta amolação que havia causado aos outros, andava então a pé.

Não era fácil ficar com as pernas doendo, com bolhas nos pés, no tempo de verão, suada e mal cheirosa, despenteada pela ação do vento, ou pelo frio, ou pela ação da chuva, abrir a pasta molhada e tirar dela o currículo sob os olhos impiedosos, humilhantes, frios, de pouco caso de uma secretária bem colocada de há muito tempo e que lhe lançava um sorrisinho maldoso de desprezo ou de rejeição. Então com o olhar molhado de lágrimas, o tremor nas mãos, o coração aos saltos, ou, às vezes, mais tarde até indiferente, largava-o em cima de uma mesa e virava as costas, não se importando que alguém o confundisse com qualquer papel e o jogasse em um lixo.

Sempre que estava em casa fazendo outras atividades que não fosse o de limpar e arrumar a casa de outros, parava e lia e relia e estudava sozinha porque não havia como pagar algum cursinho ou especializar em alguma área ou fazer alguma faculdade. Com muita dificuldade conseguira fazer o segundo grau em uma escola pública e até conseguira boas notas, mas quanto a ingressar na universidade isso não poderia, pelo menos enquanto não tivesse um emprego que lhe garantisse pelo menos a comida. Além disso, havia a condução, havia o material e o aluguel da casa onde morava com a mãe e a irmã menor de onze anos.

Desde a morte do pai, aquele sufoco. Ele era pedreiro, ganhava um pouco mais e com a mãe, diarista, coitada, conseguia viver um pouco melhor, mas agora ela ajudava a mãe nas faxinas e a mãe não concordava com isso. Dizia para ela:

_ Você não, filha! Quero que seja alguém.

Mas a concorrência era muito difícil. Três anos haviam passado desde que terminara o segundo grau, mas as perspectivas de conseguir e primeiro emprego eram quase nulas. Exigiam sempre experiência.

Um dia, como todos os outros, saiu para ir a uma reunião na escola de sua irmã e passando por uma avenida anotou o endereço de um escritório onde estavam procurando uma recepcionista. Chegando em casa, alvoroçada, preparou um novo currículo e naquele mesmo dia subiu no elevador do prédio e apresentou o currículo ao funcionário do balcão encarregado de receber. Perguntou se haviam preenchido a vaga e o rapaz disse que ainda não, olhando-a interrogativamente. Voltou para casa e aguardou ansiosa que recebesse uma carta, pois não tinham nem sequer telefone.
Nada. Mas, mês depois recebeu uma convocação para uma entrevista na quinta-feira, dia dezessete às catorze horas. Estavam em um sábado, dia doze.

Pôs-se nervosíssima. Tentava se acalmar. Que iria vestir? O que iria calçar? Como se pentearia? Não pararia de tremer? Gaguejaria? E dor de barriga? Teria? Se ficasse calma, quem sabe conseguiria se sair bem. Sua mãe e sua irmã a observavam. Sua irmãzinha a olhava espantada com seu nervosismo. Sua mãe tentava acalmá-la, dizia que tinha plena confiança nela, que se sairia bem. Não se preocupasse. Deus a ajudaria. Rezaria para que tudo saísse bem. O que precisa fazer primeiro? Arrumar uma roupa de acordo. O que você acha de sairmos e comprar alguma blusa que combine com aquela calça? Você fica bem nela. É, mãe, mas precisa ser social. Não posso ir de calça jeans. Compraremos uma calça social também. Vai ficar caro, mãe, a senhora vai pagar como? Peço uma diária antecipada para D. Lúcia. Ela não irá negar.

Naquela tarde, com o dinheiro na mão Suzete e sua mãe foram numa loja do bairro e fizeram as compras. E mais o sapato, barato, mas confortável, e assim pelo menos um problema estava resolvido. Agora Suzete estava amarrando os cabelos para ver o que ficava melhor. Depois, um pouquinho mais calma, começou imaginar como seria a entrevista, o que lhe perguntariam e se pôs novamente nervosa. E se houvesse algum teste, como se sairia. Sabia pouco ou quase nada de computação. Tomara que não lhe pedissem para usar o computador. Bem, quando pensou que se não conseguisse nenhum resultado lhe restaria ser faxineira como a mãe, se sentiu calma e pensou que sua mãe conseguira comprar coisas que ela não conseguia esperando este bendito emprego que não vinha.

Chegou então quinta-feira. Suzete dormira mal. Almoçara mal e se arrumara. Mal? Bem, como pode. Foi de ônibus até o escritório. No elevador quase entrou em pânico, respirou fundo e entrou na sala onde estava um rapaz. Sentadas em cadeiras enfileiradas, estavam cinco moças bem vestidas, elegantes e bonitas que a olharam com ar de quem diz: _ Você não tem chance! Que será que esta está fazendo aqui? O rapaz meneando a cabeça, pediu documentos: RG, CIC (não tinha), Carteira de Trabalho (vazia), anotou seu nome, e pediu que aguardasse. Alguns momentos depois chegaram mais duas candidatas à vaga. E tabulavam conversa entre si sobre estudos e trabalhos.

De uma porta fechada saiu uma moça que sorriu para o moço do balcão, entregou-lhe um papel e recebeu dele um outro dizendo para ela aguardar a resposta até a data ali escrita. Ela cumprimentou uma das garotas com dois beijinhos no rosto e despediu-se.

Assim aos poucos ,de quinze em quinze minutos a sala foi ficando vazia, quando chamaram seu nome. “É minha vez”, sobressaltou-se Suzete.

Ela levantou-se meio que anestesiada pela demora, pela ansiedade e nervosismo e foi conduzida por uma moça para o interior do 9º. andar do edifício onde passou por vários departamentos em que trabalhavam muitas pessoas em computadores e mesas dispostas nas salas grandes e salas menores, escritórios pessoais. Pensou como seria bom se ela pudesse ter os conhecimentos que aquelas pessoas tinham, ter estudo para estar empregada, sentir que era alguém, como dizia sua mãe, ter uma mesa e um computador para ela. Viu que esses escritórios eram de vários advogados e ficou até desanimada de conseguir a colocação. Não correspondia ao que ela era, não parecia para ela. Pensou que se enganara, que estava no lugar errado. Como tivera a pretensão de trabalhar ali? De pensar que era um lugar em que caberia, ela uma pessoa tão simples, tão humilde? Se equivocara ao pensar que precisariam de uma recepcionista qualquer? Deveria ter se informado melhor. Deve ser por isso que todos a olhavam com ar de quem pensava ser ela um peixe fora d’água. Sentiu vontade de sair correndo, porém, algo a impedia de voltar atrás. O ambiente era bem sério e distinto.

Abriu-se uma porta e ela entrou em uma sala bem mobiliada onde um velho senhor estava sentado em uma poltrona atrás de uma mesa e pediu que também o fizesse, na cadeira em frente. Ela sentou-se. Ele ficou a olhá-la por algum tempo. Não desviava os olhos dela. E ela abaixava os olhos ou desviava para olhar demoradamente pela janela de vidros temperados, enormes, onde através deles, se via a cidade, onde pensava ela, todos estavam trabalhando. Só ela não. Ele pegou seu currículo e disse-lhe:

_Suzy Magalhães? Ela respondeu:

_Sim.

_Vinte anos?

_Sim.

_Solteira?

_Sim.

_Aqui diz que você tem apenas o Segundo Grau. Ela engoliu em seco.

_Sim.

_Nunca trabalhou? Ela outra vez engoliu em seco.

_Sim.

_Em quê? Aqui nada consta. E colocou o braço dobrado apoiando o queixo sobre a mão esquerda.

Ela respirou fundo, demorou um pouco e disse de repente, alto, com orgulho.

_De faxineira, como minha mãe. Ele sorriu e balançou a cabeça.

_Aqui diz que você é órfã. O que fazia seu pai?

_Ele era pedreiro.

_Por que quer esse emprego?

_Quero uma chance de poder melhorar um pouco a vida de minha família e continuar meus estudos.

_Se for estudar o que pretende cursar? Você se interessa por Advocacia?

_Se puder um dia estudar...Terei que pensar bem...tudo é tão difícil, creio que um curso menos caro.

_Quanto pretende que seja seu salário? Ela disse de repente:

_Mil reais. Depois arrependida. Pode ser bem menos.

_Dará para vocês viverem e você estudar?

_Estou tentando meu primeiro emprego. O senhor que irá me valorizar, não sei o que me seria justo. Fiquei muito tempo procurando emprego e ficarei muito contente se conseguisse, mesmo se ganhasse pouco.

_Todo trabalho é recompensado. Todo esforço que fazemos nos acrescenta mais experiência e, portanto, mais reconhecimento. Bem, bem, Susy, não é? Estamos entrevistando e os resultados sairão breve. Boa sorte! Entregou-lhe um papel da firma com a confirmação da entrevista e estendeu-lhe a mão.

_Obrigada senhor! Despediu-se e saiu. Estava tão calma, mas sem esperanças. Sabia que havia sido simples demais, ingênua demais ao ter aquela pretensão, diminuíra cada vez mais o seu valor ao falar de salário. Inferiorizara-se perante aquele senhor. Lógico que eles não queriam uma pessoa assim para trabalhar ali. Claro que não! Mas aquele senhor pelo menos na sua frente não tinha demonstrado desprezo por ela, e sim interesse. Isso ela julgava.

Entregou o papel ao encarregado que lhe deu um outro com a data da resposta e lá fora no saguão do prédio ouviu as garotas dizerem:

_Olhou meu currículo, ficou impressionado por eu falar três idiomas... Outra:

_Leu e disse: Muito bem, está fazendo Direito? Está na área! E outra:

_Ah! Você é filha de Dr. Adalberto?

_Bem, acho que teremos muita chance.

Suzete saiu dali desanimada, mas ao mesmo tempo recordava o velho senhor e dizia para si mesma que ele havia gostado dela. Quem sabe? Mas ao mesmo tempo: “Meu pobre currículo!”

Chegando em casa conversou com a mãe e a irmã. A pequenina achava que ficaria muito orgulhosa se sua irmã trabalhasse naquele prédio. Sua mãe dizia:

Não desanime filha, se esse não der certo, aparecerá outro. Mas ela própria, desanimada.

_Você poderia ter feito algum curso nesses três anos.

_Mas como, mãe?

Passaram-se três semanas. Extinguiu-se o prazo. Nenhuma carta. Suzete, contara cada dia e agora triste como nunca, e mais ainda, envergonhada. Não se dignaram nem mesmo a me responder.

Quando um mês e meio depois recebeu uma cartinha abriu com o coração na mão. Dizia:

Suzette Magalhães, comparecer ao escritório do Dr. Jacob, munida de tais documentos. Suzette mostrou para sua mãe e pularam de alegria, abraçadas. Olharam a lista de documentos, muitos. Não importa iriam providenciar juntas.

Outra pergunta menor:

_Mas que roupa ir? Não tinha outro jeito. Era a mesma calça. Só mudaria a blusa.

E assim na segunda feira, às oito da manhã estava Suzete na sala, sentada, esperando ser chamada para entregar os documentos e ser orientada na sua função de recepcionista.

Chamaram-na para dentro e ela seguiu a moça através do corredor até a sala de Dr. Jacob, mas ele não estava lá, sim, três advogados e um deles lhe disse:

_Dr. Jacob faleceu, mas antes disso designou você para aprender o trabalho sob nossa orientação, para assumir depois algumas funções básicas. Exigirá muito esforço de sua parte, mas ele acreditou em você e no seu testamento a tornou herdeira de todos os seus bens, tendo em vista ele não ter nenhum parente. Até os vinte e um anos fará esse estágio na área de advocacia para adquirir um pouco de experiência e nós continuaremos a ser responsáveis pela administração de seus negócios como sempre fizemos. Isto enquanto se prepara, ou até terminar seus estudos, quer dizer exige-se que faça um curso universitário. Mas cremos que você terá interesse nisso.

Suzy Magalhães, após mais três semanas inacreditáveis para ela e sua família, cumprindo todas as formalidades necessárias, preenchendo e assinando todos aqueles papéis e depois visitando todos aqueles escritórios, cumprimentada por muitos sob suas ordens, julgava ainda não merecedora de tudo aquilo.

_Por quê ela? Mas...

_Por quê não ela?

Seguindo todas aquelas orientações, com prazer e seriedade, agora é uma senhorita advogada, justa, competente e distinta. Frequenta os melhores “costureiros”, e sempre quando entra comovida na sala onde fez sua primeira entrevista e observa o retrato na parede do Sr. Jacob, lhe parece que já havia conhecido esse rosto, de um senhor velho, sorridente, que sempre a olhava interrogativamente, nos seus dias de desânimo e

desespero.


Criado por Lavínia Ruby em 26/01/11. mariegracev






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