4 de outubro de 2021

Vale Muito Contar Sobre A Vida Simples De Um ser Humano

 

Vale Muito Contar Sobre A Vida Simples De Um Ser Humano - Por L.R.




Vagava pelas ruas da cidade.

Descia o morro, subia o morro.

Ele era aos olhos de todos uma pessoa solitária, sem família, sem rumo.

Vivia da bondade alheia.

Davam-lhe alimento, roupas velhas, algum dinheiro.

Detinha-se nas portas, quando lhe batia a fome.

Sentava em algum canto e ali engolia sofregamente a sua comida com grande garfadas.

Era alto, bem alto, negro, com olhos grandes; usava camisa meio encardida, calça em tom castanho dobrada até a metade das pernas, os grandes pés descalços, empoeirados e rachados davam passos enormes, e às vezes, cambaleantes, quando estava embriagado, o que não era raro porque as pessoas também contribuíam para isso oferecendo-lhe ao invés de comida, moedas que gastava no bar em troca de cachaça.

Nessas vezes em que ficava bêbado, os olhos de fundo branco tornavam-se avermelhados, seu semblante ameaçador, principalmente quando as crianças se reuniam em grupo e seguiam atrás dele, morro abaixo, gritando seu nome e ele fazia de conta que iria atrás, virando, abrindo os enormes braços, e elas corriam em várias direções.

Ele, porém era inofensivo e as pessoas estavam acostumadas com ele.

Tornava-se uma figura folclórica quando colocava um chapéu de palha desfiada sobre a cabeça e fumava um cigarrinho de palha.

Gustão era seu nome.

Ele também tinha sua história. Como todos também possuiu pai e mãe.

Porém, como consequência da escravidão os perdeu.

Foram vendidos.

Ele havia nascido antes da Abolição.

Estava então com seis anos de idade.

Agora com cinquenta e oito e muito maltratado aparentava muito mais.

Quem contou sobre sua vida foi um vigário que o conheceu criança e que cuidou dele por muito tempo até ficar mocinho.

Depois ele saiu de sua casa e foi trabalhar no corte da cana, mas se entregou à bebida.

Perambulou por todo lado, mas não encontrava paz e por sua aparência assustava as pessoas que o rejeitavam.

Muitas vezes foi preso por roubar para matar a fome.

Depois voltou a procurar o vigário, agora velhinho e que não pôde mais ampará-lo por estar doente.

Então como todos sabiam que ele era protegido dele não o perseguiram mais e o adotaram como indigente da cidade.

Na época de inverno recolhia-se ao abrigo, mas bem cedinho saía e voltava a perambular.

Às vezes as pessoas gostariam de saber o que pensava aquela cabeça.

Muitos tentaram uma conversa com ele, mas o que conseguiram ouvir era uma história estranha, contada assim:

_Eu pequenino, mamãe cuidava. Queria mamar, mamãe não podia. Chorei, chorei chorei. Ela foi embora. Eu vi todos irem embora, todos. Vi tudo escuro. Vi bicho papão. Vi bicho. Não vi mamãe, irmãozinho. Mamãe não me deu de mamar. Sede! Muita sede! Muita fome! Queria comer! Doeu! Doeu! Fui embora. Estrada comprida! Sozinho! Cansado! Bicho papão! Tutu marambaia! Onde está papá, mamã? Saudade! Pensei que vinham me matar! Corria, não lembro! Todos foram embora!

Gustão continuou por muito tempo por lá, até que um dia o prefeito da cidade mandou-o para o manicômio.


Personagem real, baseada em fatos reais, uma história contada pelo meu pai. Escrita por Lavínia Ruby em 05/05/10. mariegracev

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